rss
email
twitter
facebook

sábado, 27 de março de 2010

A Síndrome de Listra


síndrome
(grego sundrome, -es, reunião)
s. f.
1. Med. Conjunto de sintomas que caracterizam uma doença.

Em Listra estava sentado um homem aleijado dos pés, coxo de nascença e que nunca tinha andado. Este ouvia falar Paulo, que, fitando nele os olhos e vendo que tinha fé para ser curado, disse em alta voz: Levanta-te direito sobre os teus pés. E ele saltou, e andava. As multidões, vendo o que Paulo fizera, levantaram a voz, dizendo em língua licaônica: Fizeram-se os deuses semelhantes aos homens e desceram até nós. A Barnabé chamavam Júpiter e a Paulo, Mercúrio, porque era ele o que dirigia a palavra. O sacerdote de Júpiter, cujo templo estava em frente da cidade, trouxe para as portas touros e grinaldas e, juntamente com as multidões, queria oferecer-lhes sacrifícios. Quando, porém, os apóstolos Barnabé e Paulo ouviram isto, rasgaram as suas vestes e saltaram para o meio da multidão, clamando e dizendo: Senhores, por que fazeis estas coisas? Nós também somos homens, de natureza semelhante à vossa, e vos anunciamos o evangelho para que destas práticas vãs vos convertais ao Deus vivo, que fez o céu, a terra, o mar, e tudo quanto há neles; o qual nos tempos passados permitiu que todas as nações andassem nos seus próprios caminhos. Contudo não deixou de dar testemunho de si mesmo, fazendo o bem, dando-vos chuvas do céu e estações frutíferas, enchendo-vos de mantimento, e de alegria os vossos corações. E dizendo isto, com dificuldade impediram as multidões de lhes oferecerem sacrifícios.
(Atos dos Apóstolos, cap. 14, vs 8-18 – ARA)

Vivemos tempos difíceis para a Igreja de Cristo. A Igreja já enfrentou períodos turbulentos antes desses e provavelmente os enfrentará depois. O que torna a época em que vivemos um período especialmente turbulento e potencialmente devastador é a forma como o cristianismo é apresentado, explorado e difundido em nossa sociedade. A Igreja já experimentou a estagnação sob o estigma Católico Apostólico Romano que amarrou o cristianismo a seus dogmas e ritos, obrigando todos quantos criam (e os que não criam também) a reverenciar e obedecer à entidade eclesiástica no lugar de Jesus. Ela já experimentou e profissionalizou sua militarização na época das Cruzadas e prestou-se ao papel de tribunal terreno na época da Inquisição. Teve sua reforma ensaiada e sufocada várias vezes. Se viu às voltas com oportunistas e genocidas durante e após a Reforma Protestante. Não somente apoiou como incentivou o tráfico de escravos e as colonizações genocidas das grandes potências européias na India, África, Oceania e nas Américas do Norte, Central e do Sul. Foi conivente com ideais segregacionistas, tais como os Nazistas, Klu Klux Kan e também com processos obscuros da ditadura aqui no Brasil. Na verdade temos um cristianismo erguido e sustentado por muito mais mártires do que os que vemos expostos em livros como “Heróis da Fé”. Temos um cristianismo construído pelo sangue de milhares e milhares de inocentes. Mas esse cristianismo que não é, e jamais foi, o cristianismo de qualquer um dos evangelhos ou epístolas; esse cristianismo que se ergueu da astúcia política de seus idealizadores utilizando-se de ações maquiavélicas para se solidificar, encontra-se hoje tão ou mais maculado do que jamais esteve em toda a sua história.
A ameaça que desta vez paira sobre o cristianismo é uma das piores que ele jamais enfrentou: a extrema e completa vulgarização de seus ideais, conceitos e doutrinas. Vivemos na era das grandes corporações eclesiásticas protestantes. Na era dos super pregadores; conferencistas de todas as formas e tamanhos, para todos os gostos e gêneros. Na era da tão famosa, controversa e condenada - mas empregada largamente – teologia da prosperidade. O cristianismo protestante atual encontra-se encurralado e ameaçado. Tomado de refém por agenciadores escusos, o protestantismo, que veio séculos atrás com a promessa redentora de libertar o cristianismo das amarras seculares e catapultá-lo definitivamente para as esferas espirituais, definha, cativo, da ganância desmesurada de lobos em pele de ovelha.
O teor que está na origem dos escândalos de outrora e os de hoje é o mesmo: ganância, egoísmo, sede pelo poder e afins. O grande diferencial entre eles é que hoje vivemos numa época em que (graças a Deus!) experimentamos a liberdade de expressão e temos potencializado os efeitos que tais escândalos surtem pela facilidade e rapidez com a qual a notícia se propaga na era digital. A liberdade de expressão nos permite “colocar a boca no trombone”, ou seja: duvidar, questionar, inquirir por respostas e quando não satisfeitos por estas, protestar; em alto e bom som, utilizando dos meios disponíveis e legais para tanto. A internet nos permite acompanhar em tempo real as notícias e auxilia na interação de pessoas que comungam de uma mesma linha de pensamento. Esses fatores, incitados através de denúncias, escancaram as portas dos bastidores eclesiásticos e nos apresentam a realidade por trás da realidade difundida e estabelecida como verdade pelos manipuladores da fé.
Em Listra, Paulo e Barnabé foram vítimas de culto de adoração. A multidão se extasiou diante do milagre realizado através da vida de Paulo e imediatamente os tomaram por deuses. Touros foram trazidos pelo sacerdote de Júpiter e a multidão ansiava por lhes oferecer em sacrifício. Oras, foi com grande dificuldade que Paulo e Barnabé impediram a multidão de lhes oferecerem sacrifícios, irritando-se e rasgando suas vestes, discursaram e conseguiram demovê-los de suas intenções, testemunhando a respeito de Deus não somente com seus atos e palavras, mas através de seu irrevogável caráter cristão que os impedia de receberem para si uma glória que era devida a Deus.
Atitudes como a de Paulo e Barnabé em Listra deveriam – e a deles, como todas as demais no Novo Testamento (e também no Antigo), foi registrada com esse intuito – servir de exemplo a cristãos de todas as épocas, fugindo da idolatria e não se rendendo a egolatria, conservando assim, intactos, valores que são tão caros a ideologia cristã. Deveriam, mas não servem. Com suas consciências obnubiladas pela ganância e sede de poder, líderes evangélicos, conferencistas de renome, ministérios de louvor e outros profissionais da fé, deixam-se seduzir pela adoração perpetrada pelos fiéis. Ovacionados, imitados, regiamente remunerados pelo trabalho que realizam; descaracterizam-se gradativamente como cristãos, adquirindo posturas e atitudes que se distanciam proporcionalmente da ética e da postura cristã à medida que obtém reconhecimento e, consequentemente, sucesso em seus ministérios. Ao invés de adotar postura semelhante à de Paulo e Barnabé que repudiaram a idolatria direcionada a eles, não somente passam a aceitá-la como incentivá-la. Utilizam-se de sua fama para propagar doutrinas sem embasamento bíblico – vulgarmente conhecidas como “heresias” – com o singelo intuito de arrecadar cada vez mais e mais recursos financeiros e propagandear virtudes irreais e inalcançáveis ao ser humano, colocando-os sobre verdadeiros “pedestais espirituais”, o que lhes concede uma suposta e incontestável “autoridade”. São detentores das mais variadas verdades e autoridade máxima em assuntos de qualquer ordem onde detém, inquestionavelmente, a palavra final.
E é nisso que se constituí essa síndrome, a Síndrome de Listra que ganha corpo e força no cristianismo moderno. Sintomática, evidencia a inevitável putrefação de um corpo estranho no meio do Corpo. Avassaladora, varre de seu caminho todo bom senso e esperança salutar deixando como rastro alienação, delírio e uma esperança ilusória depositada em elementos efêmeros. O histrionismo de tais farsantes infecta a vida espiritual e alastra-se como um câncer, repercutindo negativamente no caráter de nossos cristãos. E diante de tantos exemplos negativos sustentados por atitudes inconseqüentes e nefastas diante da Palavra só nos resta, como não poderia deixar de ser, olhar para os exemplos bíblicos e resistir ao maligno, que assim fugirá de nós.

David Quartieri

sexta-feira, 26 de março de 2010

Santos e Soldados


• título original:Saints or Soldiers
• gênero:Drama
• duração:01 hs 30 min
• ano de lançamento:2003
• site oficial:http://www.saintsandsoldiers.com/
• estúdio:Go Films LLC / Medal of Honor Productions LLC
• distribuidora:Imagem Filmes
• direção: Ryan Little
• roteiro:Geoffrey Panos e Matt Whitaker
• produção:Adam Abel e Ryan Little
• música:J Bateman e Bart Hendrickson
• fotografia:Ryan Little
• direção de arte:
• figurino:
• edição:Wynn Hougaard
• efeitos especiais:M.R. EffectsOriginal

“Mais um filme sobre a Segunda Guerra Mundial? Nããããoooo!!! Eu não agüento mais!”
Você pode estar pensando exatamente isto ao ver indicado aqui o filme “Santos ou Soldados” – tradução inintelígivel por sinal, já que o título original “Saints and Soldiers”, ou seja “Santos E Soldados” apesar de soar parecida não possuí o mesmo significado do original, mas vá lá...
Santos e Soldados (vamos tratá-lo assim), é um filme de baixo orçamento, elenco praticamente desconhecido e poderia muito bem passar despercebido como apenas mais um filme sobre a Segunda Guerra Mundial não fosse o fato de seu enredo, além de falar das agruras inerentes a uma guerra e suas batalhas (aqui, no caso, a conhecida Batalha de Bulge, que resultou no Massacre de Malmedy, nas florestas da Bélgica em 1944), explorar a questão da fé através da pessoa de um ex-seminarista e, apesar das referências Mórmons à sua filiação religiosa (ele diz ser de Snowflake, Arizona, cidade fundada e povoada pelos Mórmons), trazê-la à tona no relacionamento dos personagens com maestria e proficuidade durante o filme.
Com várias indicações e premiações em festivais independentes de cinema (leia-se fora do esquemão Hollywoodiano) este é um filme que vale como divertimento, mas que encontra seu verdadeiro, e inestimável valor, na lição que ele nos deixa.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Neon Bible by Arcade Fire


O Arcade Fire surgiu em Montreal, no Canadá, em torno do casal Win Butler e Régine Chassagne. Lançou seu primeiro álbum oficial em 2004 “Funeral”, título que surgiu após o falecimento de membros da banda durante a gravação, obtendo prontamente sucesso de crítica e público e reconhecimento de artistas já consagrados como David Bowie e U2. Com seu segundo álbum “Neon Bible (2007)”, se firmaram no cenário musical como uma das melhores e mais promissoras bandas da atualidade. São também famosos por se utilizarem de uma diversidade enorme de instrumentos musicais em suas composições e pelas improvisações e interações com o público em seus shows.

Em Neon Bible, que nos brinda com belíssimas canções como “My Body Is A Cage”, “No Cars Go” (música que evoca poeticamente a esperança de uma vida futura) destaco a (muito pessoal, no meu caso) “Intervention”, música com a qual todo cristão que já se doou à igreja e se sentiu roubado nisso pelas instituições eclesiásticas, deve prontamente se identificar.

Aproveitem!

Intervention


The king's taken back the throne
The useless seed is sown
When they say they're cutting off the phone
I'll tell 'em you're not home

No place to hide
You were fighting as a soldier on their side
You're still a soldier in your mind
Though nothing's on the line

You say it's money that we need
As if we're only mouths to feed
I know no matter what you say
There are some debts you'll never pay

Working for the church
While your family dies
You take what they give you
And you keep it inside
Every spark of friendship and love
Will die without a home
Hear the soldier groan, "We'll go at it alone"

I can taste the fear
Gonna lift me up and take me out of here
Don't wanna fight, don't wanna die
Just wanna hear you cry

Who's gonna throw the very first stone?
Oh! Who's gonna reset the bone?
Walking with your head in a sling
Wanna hear the soldier sing

Working for the Church
While my family dies
Your little baby sister's
Gonna lose her mind
Every spark of friendship and love
Will die without a home
Hear the soldier groan, "We'll go at it alone"

I can taste your fear
It's gonna lift you up and take you out of here
And the bone shall never heal
I care not if you kneel

We can't find you now
But they're gonna get their money back somehow
And when you finally disappear
We'll just say that you were never here

Been working for the church
While your life falls apart
Singing hallelujah with the fear in your heart
Every spark of friendship and love
Will die without a home
Hear the soldier groan, "We'll go at it alone"
Hear the soldier groan, "We'll go at it alone"



sábado, 20 de março de 2010

AMOR E EXÍLIO - MEMÓRIAS


Amor e Exílio – Memórias (1970*, L&PM Pocket, tradução de Lya Luft) de Isaac Bashevis Singer (1904 – Radzymin, Polônia, 1991 – Miami, E.U.A.)

Singer foi um dos grandes escritores do século XX. Laureado em 1978 com o prêmio Nobel de literatura, foi autor de dezoito romances além de diversos artigos, ensaios e contos – com os quais alcançou imensa popularidade. Teve sua obra traduzida em diversos idiomas além de algumas adaptações para o cinema como Yentl (1983) e Inimigos, Uma História De Amor(1989).

Autobiográfico, Amor e Exílio – Memórias, é um livro ímpar. Discorrendo desde sua infância na Polônia até sua imigração para os Estados Unidos, Singer nos prende em suas histórias repletas de considerações críticas e bem humoradas a respeito da vida, pessoas e, principalmente, da religiosidade que inerentemente permeava a vida de qualquer judeu naquelas colônias européias. Seu olhar aguçado, seu senso afinado e sagaz traduzem sua sociedade e seu mundo de forma inigualável e tornam atraentes e atemporais os relatos ali descritos. Singer escreve originalmente em iídiche, língua utilizada pelas colônias hassídicas que habitavam a Europa, mas escreve com tal maestria que sua obra resiste às traduções para o inglês e destas para o português (não sei se a Lia Luft fala iídiche), mantendo sua vivacidade e espírito praticamente intactos.

Um dos pontos que mais me chama a atenção em sua obra é o denso e eterno conflito de Singer com Deus e a religiosidade, e Amor e Exílio – Memórias, não foge à regra. Trazendo a luz reflexões, dúvidas, receios, desconfiança e, muitas vezes, revolta, o autor traduz em palavras sentimentos que, inexprimíveis, assolam a maioria de nós. Tratados com sinceridade, honestidade e humor, tais conflitos são expostos ao mesmo tempo de forma pertinente e edificante. Aliado as suas experiências de vida que nos são apresentadas no decorrer do livro, tais conflitos redundam em diversão, reflexão e nos induzem a processos de aprendizagem do mais alto calibre. Amor e Exílio – Memórias é um livro que nos faz rir, chorar e refletir sobre nossa condição e deveres para com a vida e o próximo.

Se o fizer, boa leitura!

*Meu livro traz duas datas de publicação: 1970 no catálogo e 1984 na biografia de Singer.

David Quartieri

terça-feira, 16 de março de 2010

A Cortina De Fé


Heb 11:1 Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se vêem.

Ao proferir seu discurso em Fullton, no dia 5 de março de 1946, após o término da II Guerra Mundial, no estado de Missouri nos Estados Unidos, Sir Wiston Churchill celebrizou a espressão “Cortina de Ferro” – já anteriormente utilizada por Joseph Goebbels, Lutz Schwerin Von Krosigk e por ele mesmo – utilizando-a para designar a política adotada pela antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e seus estados-satélites de implantação do sistema socialista de governo.

A política da “Cortina de Ferro” consistia em separar a União Soviética e seus países associados de todos os demais. Os países pertencentes a este bloco isolaram-se, então, do restante do mundo. Assim ficaram de um lado a União Soviética com seus aliados; do outro os Estados Unidos e todo o restante do mundo ocidental. Iniciava-se ali uma disputa pelo poder bélico, uma corrida armamentista que culminaria na Guerra Fria. Isolando sua população do mundo capitalista o bloco Soviético criou uma sociedade alienada e carente de valores sociais saudáveis. Ao impor a tutela do estado em cada aspecto da vida de seus cidadãos a União Soviética os privava não somente de sua individualidade como também de direitos que viriam a ser sacramentados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos que foi adotada pela ONU no dia 10 de dezembro de 1948.

Ao desenvolver seu raciocínio expondo aos judeus o sacrifício de Cristo como auto-suficiente para libertá-los do jugo da Lei e levá-los à redenção não através de atos litúrgicos e sacrifícios; mas sim através da fé, o autor da epístola aos Hebreus nos explica que a mesma é “… o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se vêem. (Hb 11:1)”. E ele continua, apresentando o argumento de que a fé de Noé salvou a ele e sua família, garantindo assim a perpetuação da raça humana; de que ela foi o agente motivador dos patriarcas em sua jornada rumo ao estabelecimento de um povo, de que foi ela a responsável pela libertação dos Israelitas do Egito. Ainda segundo ele a fé operou a entrada na terra prometida e estabeleceu Israel como nação diante de nações mais fortes e poderosas do que ela. Ele concluí também através de declarações dos patriarcas nas quais se afirmam como “ estrangeiros e peregrinos na terra” que os mesmos ansiavam por uma “pátria melhor, isto é, a celestial”. Todas as suas explanações e conclusões a respeito da fé redundam em uma única certeza: a de que a fé nos levará a uma pátria não só melhor, mas plena em excelência; a uma vida não somente mais digna, mas livre de todo medo, culpa, pecado, repleta da verdadeira paz e eterna. Jesus ao efetuar seus milagres enaltecia sempre um mesmo ponto: “…a tua fé te salvou.”. Por quê? Qual motivo levaria Jesus a misturar a cura de enfermidades com a salvação? Seria a palavra “salvação” um eufemismo para a cura de doenças? Não. A palavra “salvação” usada por Jesus em todas as ocasiões – “σῶς” (sōs̄) -, no original designa exatamente a salvação não das agruras terrenas e físicas, mas sim a salvação espiritual, que concederá a seu beneficiado a tão almejada vida eterna. Também o apóstolo Paulo ao se utilizar da expressão “o justo viverá pela fé” evoca não a vida terrena, tampouco um estilo de vida, mas seu enfoque se dá também no âmbito espiritual da vida – “ζάω”( zaō) – eterna. Ou seja, a fé de acordo com os autores bíblicos é instrumento de salvação e, partindo ela desse princípio, abrange todos os aspectos da vida terrena e encerra-se nela e com ela ao cumprir seu papel, e não o contrário.

Hoje vivemos não somente a banalização do termo fé como também, e principalmente, sua deturpação. A fé é utilizada abertamente e na maioria das vezes não como instrumento de salvação, mas como instrumento de prosperidade material e alienação. É empregada em rituais místicos que são tomados como manifestações inovadoras de fé. Sua aplicação desregrada extrapola em muito os princípios bíblicos gerando confusão no seu entendimento, aberrações em sua aplicação e desvio de seu verdadeiro e salutar objetivo em detrimento de atitudes esquizofrênicas e superficiais.

A utilização da fé pelos agentes neopentecostais que agressivamente incutem a mórbida teologia da prosperidade; as lúdicas e falaciosas ministrações de louvor que pululam Brasil afora sem o mínimo respaldo bíblico, ensinando a nossos jovens uma espécie de alienação transcedental – ganhar o Brasil para Jesus quando o a Bíblia nos diz que o mundo jaz no maligno? – privando-os de um senso real não só dos conceitos bíblicos como da vida em geral. Atos proféticos onde pastores reúnem seus rebanhos para marcar territórios das formas mais estranhas possíveis: enterrando bíblias, objetos, fazendo caminhadas intermináveis de oração com as mãos para o alto e mesmo urinando em lugares específicos – isso mesmo, urinando – com o intuito de expulsar das dependências das cidades as hostes demoníacas que habitam seus territórios. A fé empregada como instrumento político: pastores estabelecendo alianças espúrias, utilizando-se do púlpito para promover candidatos de acordo com seus interesses; obrigando sutilmente seus membros a votarem em candidato X ou Y através de ameaças veladas. A igreja enterrada no nepotismo eclesiástico, onde pastores perpetuam seu poder através de seus filhos, genros, sobrinhos e além; tenham eles chamado ministerial ou não, fazendo com que a igreja sofra as conseqüências de terem pessoas incapacitadas para cargos de relevância apenas para satisfazer os interesses pessoais de quem as administra. A venda camuflada de cargos, a administração financeira obscura, e muito mais.

Essas posições superficiais, tendenciosas e egoístas em relação ao uso da fé me trazem a memória os tempos da Cortina de Ferro. Da mesma forma que o bloco comunista alienava sua população deturpando conceitos a respeito do mundo capitalista e os privando de uma visão isenta e honesta do mundo como um todo, assim os manipuladores da fé iludem toda uma geração que ansiosa por mudanças e cada vez mais afligida pelas vicissitudes e exigências da vida atual, se entrega de corpo e alma a tais ilusionismos na vã esperança de encontrar a verdadeira paz e se livrar de seus problemas imediatos. A fé contemporânea é manipulada, subvertida, explorada e tratada como artigo. Ela perece em essência nas mãos hábeis de ilusionistas egocêntricos, gananciosos e heréticos. Ela é utilizada como uma cortina para separar o cristão do mundo real, para colocá-lo à margem de um mundo ao qual ele pertence e no qual ele tem que não somente viver como tomar parte. Ela tem sido usada para seduzir, minar e alienar cristãos de todas as formas imagináveis. Quando não o separa do mundo espiritual através de conceitos doutrinários que privilegiam a busca pela materialidade, o separa do mundo real por meio da alienação mística e carente de, no mínimo, bom senso. Em ambos os casos o cristão perde e a fé é corrompida e denegrida. Essa falsa fé – a Cortina de Fé – desce sutil e insidiosa, cumprindo exatamente o papel que lhe é destinado: alienar o cristão de seu objetivo, separá-lo de sua razão e de seu senso crítico para, assim, transformá-lo não num ser livre em Cristo Jesus como todo cristão deve ser, mas num inofensivo e frágil pseudo-adorador que privado de sua lógica se contenta com migalhas quando poderia estar se refestelando num banquete. Ela serve a um sistema corrupto, a um sistema falido quando confrontado com a verdadeira fé, que é aquela que nos conduz à salvação. É hora de descerrarmos essa cortina. É hora de trazermos a fé à razão, para que nos desvencilhemos de uma vez por todas das falácias e engodos que tais falsos profetas nos impingem diariamente. É hora de seguir o exemplo de Paulo e combater o bom combate, para que possamos terminar com louvor nossa carreira e guardarmos a real, firme e insubstituível, verdadeira fé.

David Quartieri